Moedor de carne

Cortar cebola me faz chorar. Não pela ardência nos olhos, mas de saudade. O aroma ácido que se desprende do interior da cebola nem chega aos meus olhos, antes é aspirado pelo meu nariz evocando a sensação dos almoços de domingo da minha infância, em Pindamonhangaba.

O trigo era hidratado na bacia laranja, reservada só para isso. As cebolas inteiras e peladas se exibiam na pia ao lado da peça enorme de patinho temperada, pronta para ser moída. As crianças se acotovelavam ao redor da minha avó para garantir o lugar na boca do moedor manual, onde as minhoquinhas de carne e trigo saíam fresquinhas pelos buraquinhos e eram modeladas pelas nossas mãos antes de ser devoradas. – Todo mundo lavando as mãos antes de pegar o quibe! Minha mãe tentava colocar ordem enquanto meu avô reclamava: – Aharaedinak que criançada esfomeada! Minha avó emendava tentando esconder um sorriso orgulhoso: – Não consigo nem colocar o quibe na travessa, vocês comem tudo antes, mal esperam sair do moedor! Era o sucesso do almoço aquele quibe cru. Os adultos disfarçavam, mas entre as mãozinhas afoitas das crianças, apareciam mãos maiores – algumas peludas – embaixo da saída do moedor esperando a massa de carne enquanto minha avó girava a manivela pesada de ferro. Só meu avô ficava tranquilo. Luiza nunca o deixaria sem a sua porção especial de quibe cru, sabia que antes de abrir a fila para as crianças ela tinha separado seu pratinho com a carne já temperada com pimenta e canela acompanhada de duas cebolas cruas e inteiras.

Ver meu avô comendo era a melhor parte do almoço. Com a destreza de um legítimo descendente de libaneses e décadas de prática, destacava com as mãos mesmo uma camada inteira da cebola e a preenchia até o topo com o quibe, finalizando a obra de arte com um galhinho de hortelã fincado no pequeno buraco onde o recheio aparecia. A primeira mordida crocante era o ápice do espetáculo. Metade da esfera de cebola recheada de quibe cru desaparecia e a outra metade era engolida na segunda mordida. Em seguida, pegava outra camada grossa de cebola e repetia a preparação esmerada. Era um croc croc croc sem fim, não entendia como meu avô conseguia comer cebola como se fosse maçã. Tão ardida, tão forte, cada mordida que ele dava exalava um aroma que queimava minhas narinas. Me perguntava se com o tempo as pessoas evoluíam e conseguiam mastigar cebolas cruas como ele. Ele já era velho e ainda tão forte, saudável, luminoso. Seria a cebola o seu segredo?

Num destes domingos, resolvi que já era hora de iniciar a minha evolução e dar a primeira mordida. Minha mãe estranhou, perguntou se tinha certeza e eu além de confirmar minha decisão ainda sugeri que ela fizesse o mesmo, pois já tinha perdido tempo demais. Eu ainda era nova, tinha a vida inteira pela frente para me acostumar com o gosto, já minha mãe teria que se apressar a apreciar as mordidas crocantes da cebola para uma velhice mais sadia. Ela ignorou meu conselho e eu, cheia de coragem, dei a mordida fatal que anestesiou meus dentes da frente e jogou para dentro da minha boca aquele pedaço liso e suculento que ardeu minha língua e lacrimejou meus olhos. Não consegui mastigar, tive que cuspir discretamente, assumindo minha derrota. Passei dois dias com um gosto horrível na boca e decidi que queria ser uma velhinha como a minha avó: frágil, gordinha, encolhidinha, comendo chocolate e não cebola crua.

Até hoje não consigo comer cebola, mas nunca vou deixar de cortá-las.